Coluna do Alf: “Dr. Quem?”


Dr. Quem?

Se a Inglaterra do início dos anos 60 não tivesse sido tomada pela beatlemania, é muito provável que hoje estivéssemos discutindo sobre a “whomania”. E, não, não me refiro ao grupo de rock inglês The Who, contemporâneo dos Beatles, mas sim, à série de TV de ficção científica “Doctor Who”, nascida praticamente no momento em que os “Fab Four” de Liverpool iniciavam sua revolução armada de guitarras que, na verdade, foi a única revolução daqueles conturbados anos 60 que realmente deu certo.

Isso tudo dito acima pode até soar como um disparate, mas “Dr.Who” havia conseguido um fato inédito até então. Foi certamente a primeira série sci fi inglesa a cair no gosto do público, mesmo se levarmos em conta que a FC televisiva daquele tempo ainda engatinhava e, portanto, a concorrência ainda era quase nula com as séries sci fi americanas.

Dr. Who nasceu de uma “brainstorm” promovida pela divisão de arte dramática da BBC TV, na época comandada por Sydney Newman que, ao lado do chefe do departamento de roteiros, Donald Wilson, junto com mais dois escritores, C.E. “Bunny” Weber e David Whitaker, criaram a série. A idéia de que a série tratasse de viagens temporais partiu de Alice Frick, também do Departamento de Roteiros, sendo que Newman batizou a série com o nome “Dr. Who” que, pelo menos até onde esse escriba sabe, nunca provocou nenhuma briga entre a BBC e o The Who.

Originalmente, a BBC queria fazer de “Dr. Who” um programa de conteúdo meramente educativo com algumas pitadas de ficção científica. A emissora queria um programa “família” para sua programação vespertina aos sábados, para capturar justamente a audiência juvenil. A idéia era passar noções de História para a molecada e, ao mesmo tempo, fazer um programa que fosse atraente para o restante do público. Por essa razão as primeiras aventuras do Dr. Who giravam em torno de episódios verídicos da História, como o Império Romano ou a Revolução Francesa.

No dia 23 de Novembro de 1963 “Dr. Who” fazia sua estréia na TV inglesa. Foi provavelmente a série de FC mais longa já feita, pois foi produzida sem interrupções até 6 de Dezembro de 1989, quando foi ao ar pela última vez. Durante esse longo período de 26 anos, “Dr.Who” se tornou extremamente popular no Reino Unido, mas seu desempenho mundo afora foi um tanto irregular, tendo feito sucesso no Japão, onde é exibido até hoje, ou nunca ter ido ao ar em outros lugares, como o Brasil, por exemplo.

Essa trajetória um tanto errática de “Dr.Who” fora da Inglaterra tem ,é claro, algo a ver com a hegemonia da FC televisiva americana. Mas “Dr.Who” tinha algumas características que a tornavam diferente mesmo de outras produções inglesas, como “Espaço 1999” ou “UFO”, ambas séries criadas por Gerry Anderson, que fizeram muito sucesso fora da Inglaterra. “Dr. Who” também não era exatamente uma série que poderíamos chamar de “underground” ou “cabeça” , como “Blake 7” ou “O Prisioneiro”, por exemplo. O que tornou “Dr.Who” singular foi seu senso de humor.

Um senso de humor bastante inglês, diga-se, que tornou a série um bom exemplo de FC humorística, o que não é uma coisa exatamente fácil de fazer em um gênero como a ficção científica, que costuma “idealizar” os temas que trata, muitas vezes fazendo-os soar como “máximas” sobre o destino da humanidade.

Logicamente, para uma série que durou tanto tempo no ar em sua primeira versão, era preciso criar um artifício para o rejuvenescimento do Dr. Who. A equipe de roteiristas da série, ao invés de complicar, apenas optou dar ao doutor a capacidade de se regenerar, o que, claro, tornou mais fácil o personagem ser vivido por diferentes atores ao longo desses quarenta e poucos anos. Curioso é que, na primeira temporada, Dr. Who, então interpretado por William Hartnell, tinha uma cara de “professor Ludovico em forma de gente”, um estereótipo do cientista que costumamos ver em filmes B, já idoso e com aquele ar “acadêmico” típico em filmes assim.

Com o sucesso da série, foram feitos dois filmes longas metragens com Dr. Who: “Dr. Who E Os Dalecks” (1965) e “Daleks – Invasão da Terra 2150 AD” (1966). Nos dois filmes, porém, o papel de Dr. Who ficou a cargo de Peter Cushing. Apesar de ambos contarem com um orçamento um pouco maior que o da série, não chegaram a ser um trampolim para o cinema, sendo exibidos exclusivamente na TV, como “episódios especiais” da série. Outra diferença é que, nos filmes, o doutor era acompanhado por duas netas em suas viagens pelo tempo. Esses dois filmes são raros hoje em dia mas, ao contrário da série, chegaram a ser exibidos na TV brasileira, em algum ponto obscuro entre os anos 60 e a primeira metade dos anos 70.

Com o passar dos anos, a série foi ganhando novos contornos e, aos poucos, perdeu seu caráter exclusivamente educacional para se tornar uma série de FC com sua própria mitologia mas sempre mantendo o humor em seus roteiros e também a idéia de o doutor sempre estar acompanhado por parceiros em suas viagens temporais, geralmente uma assistente. O próprio Dr. Who foi mudando em conseqüência da própria troca de atores que o personagem sofreu. Sua idade foi variando ao longo da série mas “estacionou” em torno dos 40 e 45 anos. Estranho que o fato de Dr. Who tenha sido interpretado exatamente por dez atores diferentes desde o surgimento do personagem, não tenha prejudicado a popularidade da série. Talvez isso seja explicado pela capacidade da série se sustentar basicamente na qualidade de seus roteiros e não ficar tão dependente de seu personagem central.

Dois anos depois de estrear na TV inglesa, “Dr.Who” chega ao continente americano primeiramente no Canadá, pela CBC (Canadian Boradcasting Corporation), que exibiu a primeira temporada da série estrelada por William Hartnell. Mas a CBC não se interessou em adquirir as temporadas seguintes da série. Talvez por causa dessa má experiência canadense, a BBC decidiu vender a série nos EUA a partir de sua terceira temporada, quando o doutor era vivido por John Pertwee, entre 1970-74.

“Dr. Who” estreou nos EUA em 1972, mas sem obter grande desempenho. As razões da pouca audiência eram as constantes mudanças de horário e também o hábito das emissoras comerciais exibirem a série sem respeitar a ordem dos episódio, fazendo com que o público não se interessasse pela série. Em 1978, porém, a PBS (uma espécie de TV Cultura americana) decidiu incluir Dr. Who em sua programação, com relativo êxito.

A série, porém, nunca foi um grande sucesso nos EUA. Em parte porque o público americano já estava mais habituado com as produções de Gerry Anderson, que foi o produtor inglês de FC para a TV mais bem sucedido fora de seu país. Além disso “Doctor Who” provavelmente era “inglês demais” para fazer sucesso fora da Inglaterra, embora tenha tido êxito em alguns países como o Japão, por exemplo.

Mas essa trajetória um tanto confusa de Dr. Who na telinha americana ainda conheceria outros lances. Em 1996, praticamente 7 anos depois da BBC cancelar a série, a Universal Pctures, em parceira com a própria BBC, resolveu produzir um novo filme de Dr. Who, que foi exibido pela Fox ainda naquele ano. O filme seria um piloto para uma nova série. Mas o filme não deu certo por várias razões, sendo a principal o fato da Universal, na época, também produzir a série “Sliders”. A Universal não quis arriscar apostar suas fichas numa nova produção sendo que “Sliders”, então, andava tendo bons resultados. Mesmo assim o estúdio tentou emplacar o projeto da nova série de “Dr.Who” em outra rede de TV a cabo, mas seu contrato com a BBC havia expirado em dezembro de 1997.

Em 2005, porém, depois de anos desaparecida, a série Dr. Who retorna com uma roupagem mais moderna mas sem perder suas características mais básicas: o humor e o bom nível das histórias. Essa nova versão vem sendo planejada, na verdade, desde o ano 2000. A nova série já é uma das atrações bem sucedidas do SCI FI Channel, com uma boa produção e efeitos visuais atraentes que ajudam a realçar a imaginação dos roteiristas da série, “viajandões” o suficiente para colocarem o doutor e sua nova parceira Rose Tyler (Bille Piper) nas situações mais estapafúrdias, sempre com ótimas tramas de FC.

É justamente essa nova versão de Dr.Who que está sendo atualmente exibida no Brasil. Porém o grande problema é que a série está passando por aqui em um canal pago de pouca visibilidade como o People & Arts, que não tem tradição de exibir séries de TV e cuja programação habitual está tomada por programas de gosto duvidoso, como “O Aprendiz”, e coisas do gênero.

Minha torcida é para que o People & Arts faça de Dr. Who uma atração importante em sua grade de programação. Se assim não for seria então melhor que a série fosse para um canal mais habituado a exibir séries. Mas, mesmo que a série tenha bons resultados por aqui, acho dificil que sua versão mais antiga seja exibida no Brasil. Também acho quase impossível que a spin off de “Dr. Who” atual, “Torchwood”, chegue aqui.

Se considerarmos como é complicado para as séries inglesas terem espaço neste país mesmo nos canais pagos, talvez Dr. Who tenha mais sorte. Bom mesmo seria termos “Espaço 1999” e “UFO”, ou raridades como “Blake 7” e “O Prisioneiro” sendo reprisadas, pois aí teríamos a chance de ver as várias facetas que a FC inglesa para a TV foi adotando.

Uma coisa que venho notando, desde a estréia de “Dr. Who” por aqui, é a insistência com que alguns fãs de FC brasileiros fazem comparações entre a série inglesa e Jornada nas Estrelas. Afinal, “Dr.Who” é para a FC televisiva inglesa o que Jornada é para a americana. Considero essa comparação perfeitamente justa e cabível, principalmente pelo que as duas séries acabaram fazendo pela FC de modo geral. Mas acho que, antes mesmo de Jornada, talvez o elo que eu considero mais pertinente é com Além da Imaginação, série criada por Rod Serling, ainda nos anos 50. Sei que muitos ao lerem isso vão fazer cara de incrédulos. Mas o elo de ligação de Além da Imaginação e Dr. Who é justamente o fato de serem duas séries de FC que surgiram no período mais quente da Guerra Fria… e abordaram esse momento histórico de maneiras completamente diferentes. Enquanto “Além da Imaginação” explorava o lado paranóico daquele tempo, com histórias bizarras que nos deixavam muitas vezes em um estado de perplexidade, “Dr. Who” partia para o humor, usando certos elementos “escapistas” para fazer uma FC que muitas vezes beira a histrionice. Uma histrionice bem inglesa, é verdade.

Espero que o novo “ Dr. Who” tenha vida longa e consiga gerar uma nova legião de fãs mundo afora. A série tem charme suficiente para isso, mas hoje a concorrência é bem mais dura que no passado. Se antes a constante troca de atores não prejudicava a série, talvez agora isso seja fatal, pois o público parece ter ficado bem menos tolerante com trocas de atores em séries de TV. Isso até seria uma ironia cruel com um personagem que fez sucesso sem sequer ter nome. Mas, para este colunista, a importância de Dr. Who para a FC da telinha já está mais que explicada, além de provar que uma simples cabine telefônica pode ser bem mais útil do que simplesmente ser usada como vestiário para super heróis apressados.

Alfonso Moscato escreve com exclusividade para o TB