TRIBUTO: Deep Space Nine completa 10 anos

O seu jeito

Há cerca de dez anos subia ao satélite da Paramount o episódio piloto de Deep Space Nine, “Emissary”. Ele trazia o desejo dos executivos do estúdio em lucrar com a alta de popularidade da marca, na esteira dos seus 25 anos, e também o desejo do criador Michael Piller em oferecer uma visão inédita de Jornada nas Estrelas. “Emissary” foi o episódio mais assistido da era moderna de Jornada, o que serviu para colocar de forma ampla para a comunidade de fãs que esta era uma série muito diferente das outras da Franquia.

Ao utilizar um cenário estacionário (uma abandonada estação de mineração alienígena caindo aos pedaços e outrora palco de trabalho escravo), tratar com propriedade de temas praticamente ausentes do restante de Jornada (fé, religião, guerra, política…) e pela primeira vez trazer personagens não-Federados (em particular uma religiosa ex-guerrilheira, um formal ex-feitor de escravos e um trapaceiro) entre os regulares; a série alienou muitos fãs que não conseguiam identificar o que viam como Jornada. Mas a sua atitude diferenciada e inovadora dentro da marca angariou ao longo dos anos um público fiel que entendeu a sua proposta e foi definitivamente recompensado por tal compromisso em longo prazo.

Da mesma forma que o começo de A Nova Geração (ainda com Gene Roddenberry no controle) foi uma resposta ao estilo de cinema de Jornada estabelecido por Nicholas Meyer, o começo de DS9 foi uma reação a A Nova Geração. Nesta última situação, um curioso impasse surgiu. Piller foi responsável pela “virada” de qualidade da turma de Picard e cia. durante a sua terceira temporada (e permaneceu ligado à série até o final) e também criou DS9 e a desenvolveu inicialmente. Obviamente havia algum limite para o quanto Piller poderia “reagir contra ele mesmo”. Ele deixou DS9 gradativamente durante a sua terceira temporada para que Ira Steven Behr (o nome que se tornou sinônimo de Deep Space Nine) pudesse liberar todo o potencial da premissa da série.

 


Da esquerda para direita, o staff de produção da série: René Echevarria, Ira Steven Behr, Ron Moore, Hans Beimler e Robert Hewitt Wolfe (sentado)
A grande variedade (de formato e gênero) trazida para os episódios da série (expandindo de forma inédita uma característica que sempre fez parte de Jornada – sendo um dos principais motivos para o seu sucesso em primeiro lugar) e o seu claro enfoque nos personagens em geral (e principalmente na complexidade destas caracterizações e da dinâmica advinda deste paradigma) foram outras marcas registradas do programa. É claro que fãs que apreciam um formato fixo (que gostam de saber o que vão receber vez após vez ou próximo a isto) e que praticamente exigem algum “payoff” em termos de ação a cada episódio não se sentiram muito à vontade com a série. Mas a sua diversidade e amor pelos seus personagens fizeram toda a diferença para os dedicados fãs que a acompanharam no curso das sete temporadas.

Em certo sentido a história de Jornada é um relato de uma época utópica para a humanidade muito depois dela ter enfrentado a sua quase extinção (com a terceira guerra mundial na Terra). Em DS9 vemos o início de um processo similar, um em que temos personagens imperfeitos, em um cenário inóspito (“É fácil ser santo no paraíso”) e submetidos a situações extremas. Os personagens (a maioria com sérios problemas e dilemas pessoais, de toda sorte) encontram sua redenção sim (ao final), mas os eventos não deságuam em nenhuma espécie de utopia, muito pelo contrário. Levam a um cenário caótico e sombrio, sendo por isto sua conclusão mais tocante e mais de acordo com as complexidades do mundo real (e dos seus inúmeros “tons de cinza”) do que Jornada normalmente é em suas outras encarnações. Um elemento que foi muito importante para desenvolver tal “processo” foi à utilização de arcos de história. Arcos de história (notadamente aquele que envolve o papel de Sisko como Emissário dos Profetas de Bajor e o arco da guerra com o Dominion) trouxeram um aspecto épico a série que raramente esta presente nas outras partes da Franquia.

 


O elenco original. Em pé: Rene Auberjonois (Odo), Alexander Siddig (Bashir), Avery Brooks (Sisko), Colm Meaney (O’Brien) e Armin Shimerman (Quark). Sentados: Terry Farrell (Jadzia Dax), Cirroc Lofton (Jake) e Nana Visitor (Kira Nerys)
Um bom ano para DS9

Este ano de 2003 parece que vai ser um bom ano para a série, seguindo o seu aniversário de dez anos, DS9 será lançada integralmente em DVD até dezembro (e esperamos que com melhores extras que os DVDs da Nova Geração). Também a série encerra as suas reprises diárias em syndication na América (um período que não foi particularmente benéfico a série, devido a inconstância da sua exibição nas emissoras ao longo dos EUA). Ano que vem (2004) a série passará a ser exibida apenas na TNN (canal por assinatura também pertencente a Viacom, conglomerado dono da Paramount, dona de Jornada), situação em que série poderá ser mais bem apreciada em ordem cronológica, de forma consistente e de maneira alinhada por todo o país do “Tio Sam”.

A possibilidade de termos projetos futuros da série são essencialmente nulas e levando em conta o atual estado criativo da Franquia, isto é um favor a Deep Space Nine. Com a maneira que DS9 acabou, qualquer projeto futuro se torna de concepção bastante difícil, devido (primariamente, mas não exclusivamente) ao destino final dado aos seus personagens. Tarefa extremamente difícil mesmo se a equipe criativa original da série estivesse envolvida em tal suposto projeto. Outro grande receio é que um eventual (por exemplo) filme para o cinema pudesse trazer uma versão por demais simplificada (com uma trama envolvendo um “vilão da vez” por exemplo) e descaracterizada da série (eventualmente distorcida para parecer algo que ela não é, o que pode se dar de diversas maneiras diferentes, para poder “caber” no conceito destes eventuais realizadores).

Felizmente nunca veremos projetos neste sentido sendo realizados. Um pequeno exemplo do quão danosas tais produções podem ser para o que foi estabelecido em DS9 (se extremos cuidados não forem tomados por seus realizadores) é o “reset póstumo” recebido pela série no recente filme “Nêmesis”, tanto no retrocesso profissional de Worf – feito embaixador e braço direito do chanceler Klingon Martok em “What You Leave Behind” (último episódio da série) – quanto nas desfeitas relações políticas entre a Federação e os Romulanos – que foram aliados na guerra com o Dominion.

O que se deixa para trás…

Para o melhor e para o pior (e a menos de lamentáveis ocorrências, como aquelas citadas do filme “Nêmesis”) o legado da série será preservado. Existe uma grande satisfação e um claro senso de fechamento nisto. DS9 é uma série genuinamente de Jornada (situada no mesmo universo ficcional e respeitando a mesma cronologia e eventos das demais), mas que paradoxalmente conseguiu criar um (sub) universo muito próprio (o que foi facilitado e fortalecido pela sua premissa envolvendo um cenário estacionário), ao introduzir novos elementos e ao colocar sua clara assinatura em outros já existentes.

Ao resgatar a plenitude do espírito da Série Clássica (de certa forma perdido com A Nova Geração, principalmente por causa do próprio Rodenberry – em mais um dos famosos paradoxos de Jornada), DS9 se apresentou como a sua herdeira de fato. Ao introduzir uma metodologia televisiva mais contemporânea (série de elenco, um grande elenco recorrente, drama orientado a personagens, caracterização tridimensional, arcos de histórias…) DS9 modernizou Jornada, deixando implícito um arcabouço sobre o qual diferentes conceitos (mesmo de séries completas) poderiam ser construídos posteriormente, conceitos que eventualmente poderiam superar mesmo o sucesso artístico de DS9. Algo que só fortaleceria (e não o contrário) o legado da série de Sisko e cia.

O futuro parece reservar algum eventual reconhecimento à série (acreditam muitos), mas o fato de tal “profecia” se realizar ou não talvez nem importe tanto. Existe uma grande satisfação em ser fã de uma série “excelente para poucos” em contrapartida a uma série “boa para muitos”. Em uma série “para poucos” (como DS9) a extrema ressonância entre as sensibilidades dos realizadores e a dos seus espectadores leva por vezes a momentos simplesmente mágicos. Em que partes da vida real dos espectadores são “mostradas” ou “comentadas” na telinha e os seus sonhos de fazer parte do processo de criação da série parecem ser atendidos (“- Eu queria tanto ter escrito esta história, ainda bem que alguém o fez por mim!”).

“Quanto mais a coisas mudam mais elas permanecem as mesmas”. Assim terminava aquela que é a melhor de todas as Jornadas. Definindo bem a sua própria essência. Ficam agradecimentos a todos que apoiaram e apóiam DS9 de uma forma ou outra, todos os responsáveis pela sua produção e principalmente a Ira Steven Behr pela sua visão e pelo grande amor que sempre demonstrou pela série. Após a filmagem da última cena da série, na hora dos técnicos desmontarem o cenário da boate de Vic Fontaine, Ira ficou sentado sozinho em uma mesa daquela “Las Vegas holográfica”, já no escuro. Interpelado para deixar o estúdio, para que este pudesse ser fechado, Behr disse: “- Eu tenho muito tempo para não estar aqui”.

Peldor Joi

 

NOTA: De qualquer forma, há um paliativo para os fãs que porventura venham a enfrentar uma eventual “crise de abstinência” por material inédito da série de qualquer espécie. Existe uma série de livros que conta às aventuras de Deep Space Nine após o seu final na televisão, apelidada como “DS9 Relaunch” (“O relançamento de DS9”). Novos personagens são “trazidos a bordo” da estação, para ocupar os lugares vagos deixados ao final da série na TV, alguns totalmente novos para a Franquia e alguns outros velhos conhecidos dos fãs como o Cardassiano gul Macet (do episódio “The Wounded” de A Nova Geração) e Ro Laren.