Salvador Nogueira no Abismo de Helm

REVIEW: “O Senhor dos Anéis – As Duas Torres”

Por Salvador Nogueira

Eu confesso: passei 2002 inteiro pouco ligando para “O Senhor dos Anéis”. Eu havia visto “A Sociedade do Anel” no princípio do ano, achado sensacional, mas nada mais. Em março, ganhei de um grande amigo meu a obra completa, um grosso volume de mais de mil páginas, no original em inglês. Prometi lê-lo. Mas não passei do primeiro capítulo na ocasião.

Então chegou o mês de dezembro e a “Onda Tolkien” começou a tomar forma. Por razões misteriosas, comecei a acompanhar as notícias sobre o novo filme que apareciam na internet. Decidi tirar a poeira de meu DVD de “A Sociedade do Anel” — que havia comprado meses atrás, mas nunca havia visto — e rever o filme. Achei ainda mais espetacular do que antes. E comecei a repetir algumas das frases mais marcantes para mim mesmo, de tempos em tempos.

Quando o novo filme, “As Duas Torres” estreou nos EUA, o estrondoso sucesso de bilheteria me convenceu a assistir à película na data de estréia no Brasil. Acabou não dando para ir na sexta, dia 27 de dezembro, mas fui no segundo dia, no sábado. Já na sessão das 17h35, o filme estava lotado.

Sentei-me na sala 9 do UCI, no Shopping Jardim Sul, em São Paulo, ainda intrigado pelo sucesso absurdo da obra de Tolkien no cinema. Eu perguntava: “O que essas pessoas todas vieram fazer aqui? Desde quando fantasia desperta tanto o interesse das pessoas? E a revolta do ‘filme-sem-final’, onde está? Que diabos as pessoas vêem nessa história que não enxergam em outras obras?”

A resposta começou a se delinear em minha cabeça assim que as luzes se apagaram e o filme começou a rodar. Para começar, “O Senhor dos Anéis”, e especificamente sua segunda parte, “As Duas Torres”, é um feito cinematográfico sem precedentes. Escrever um épico é uma tarefa árdua, que J.R.R. Tolkien parece ter cumprido com louvor. Mas filmar um épico com igual grandiosidade é uma missão ainda mais complexa — e Peter Jackson se sai muito bem com a aparentemente intangível meta de representar fielmente a Terra-média criada pela mente do escritor inglês.

Aliás, uma das chaves do sucesso de Jackson está justamente nisso: a fidelidade. Ninguém pode filmar um clássico da literatura sem essa qualidade e sair impune. Mas o diretor de “O Senhor dos Anéis” está acima de qualquer suspeita — fica muito claro que ele venera a obra de Tolkien acima de tudo. Essa qualidade, por si só, já torna a obra especial.

E o melhor de tudo é que Jackson soube preservar a essência da obra e, mesmo assim, adaptá-la à linguagem cinematográfica. Apesar da unidade da história e da produção do filme, esse trabalho mostrou diferentes facetas em “A Sociedade do Anel” e em “As Duas Torres”. No primeira parte, o enredo do livro é bastante preservado, apesar do extenso trabalho de adaptação de diálogos para os novos e mais dinâmicos contextos do cinema. Na sequência, o diretor parece ter ficado mais à vontade para alterar a narrativa em favor de cenas impactantes.

Essas modificações às vezes foram para o bem, às vezes para o mal. A chegada dos elfos a Rohan para combater os Uruk-hai, por exemplo, não fazia parte do livro, mas caiu super bem na trama e adicionou à caracterização épica do combate. O mesmo se pode dizer do banimento de Éomer, enquanto o rei Théoden estava sob o efeito do malévolo Gríma, e seu providencial retorno, trazido por Gandalf.

Em compensação, aquele arremedo de “cliffhanger”, com Aragorn caindo do abismo após uma confrontação com os malvadões e depois voltando a Helm já caindo aos pedaços não adicionou muito à trama e acabou ficando com aquele gosto de “falsa encrenca”. Isso também não está na versão literária de “As Duas Torres”.

Assim como a sequência “quase-sonho” entre Arwen e Aragorn. Mas o trecho é suficientemente curto e inofensivo para não pender nem para um lado ou para o outro.

De todo modo, essas modificações só fazem por reforçar a noção de que Peter Jackson fez um legítimo (e na imensa maioria das vezes bem-sucedido) esforço de adaptação, não uma mera transposição da história do livro para a película.

A história é claramente dividida (no livro e no filme) em três fronts. Frodo e Sam a caminho de Mordor; Aragorn, Legolas e Gimli no resgate a Merry e Pippin e na posterior luta por Rohan; e Merry e Pippin no seu embate intelectual com a Barbárvore.

A jornada de Frodo e Sam é interessante principalmente pelo enigmático e cativante personagem Gollum. Apesar de ser uma criação em CGI (o que pode impressionar tecnicamente, mas geralmente decepciona artisticamente), Gollum é provavelmente o mais vivo dos personagens de “As Duas Torres”. Mais do que um personagem de computador com qualidades expressivas sem precedentes, ele conta com a vivacidade dos movimentos do ator Andy Serkis e sua incrível capacidade vocal. Especialmente impressionante é a cena em que Gollum, à noite, nos oferece um vislumbre de seu conflito interno, dividido pela criatura (Gollum) e a vítima (Sméagol). Impossível não se comover.

A sequência de Merry e Pippin é o calcanhar-de-aquiles do filme. Todo o interesse na potencial alegoria da associação de Saruman à revolução industrial e à capacidade de destruir a natureza se perde quando a Barbárvore resolve esfregar a idéia na sua cara. O personagem da líder dos Ents foi simplificado ao extremo (para não dizer ’emburrecido’, com aquele papo de não saber o que Saruman fez à floresta) e as cenas com os dois hobbits chegam até a ser tediosas. O discurso da Barbárvore lembra aquela mania de ambientalista do Greenpeace dos anos 1980. É ruim assim.

O único momento em que a sequência realmente faz valer a pena é quando os Ents deixam de conversa e simplesmente acabam com a fábrica de soldados de Saruman, em Isengard. Mas apenas pela sensação de que o vilão está sendo irremediavelmente derrotado, nada mais.

De longe, o auge é o acompanhamento de Legolas, Aragorn e Gimli rumo ao mega-combate na fortaleza de Helm. O ritmo crescente que é imposto às cenas dessa enorme batalha, a presença de Aragorn e do rei Théoden e a ameaça da derrota, diante de tão grande exército inimigo é material para, sozinho, sustentar um filme.

Alguns acham que o uso excessivo de Gimli como alívio cômico acabou prejudicando um pouco o andamento da sequência, mas acho que a intercalação desses momentos ajudou a aliviar o peso extremo desse combate. E vale lembrar que cenas engraçadas, como a competição entre Gimli e Legolas para ver quem mata mais inimigos, estão no livro original!

E uma das piadas, em que Gimli pede a Aragorn que o atire até a ponte, é um interessante pay-off de uma sequência filmada em “A Sociedade do Anel”, em que Gimli diz que jamais um anão permitiria ser arremessado, depois de Aragorn atirar Sam por sobre uma falha numa das escadarias das minas de Moria.

Apesar das muitas baixas, Rohan e sua população são salvas, Saruman está praticamente vencido e resta apenas a Sam e Frodo chegarem a Mordor para definitivamente promover a derrota de Sauron — se conseguirem escapar de uma armadilha que Gollum está preparando para eles. Nesse clima de “suave cliffhanger” mas de ligeiro fechamento das grandes questões abertas no próprio filme, “As Duas Torres” oferece um pouco mais de satisfação aos que esperam que todos os filmes tenham final, embora guarde ainda muita antecipação pela conclusão da saga.

As luzes se acenderam, e eu estava em dúvida se preferiria sair dali e agonizar até a estréia de “O Retorno do Rei” ou simplesmente entrar na sessão seguinte e rever “As Duas Torres”. No fim, voltei para casa e vi novamente “A Sociedade do Anel”. E retomei a leitura do livro que meu amigo havia me dado há tanto.

Contudo, a pergunta sobre a qual eu tanto refletia, “Qual o apelo de ‘O Senhor dos Anéis’?”, já estava respondida. Mais do que uma obra literária num universo fictício absurdamente real, criado pela mente obstinada de um linguista, mais do que uma adaptação que beirava a perfeição, em fotografia, atuações, direção, roteirização e efeitos visuais e especiais, “O Senhor dos Anéis” oferece às pessoas um épico em que a luta pelo bem e pela moralidade se justifica — vale a pena ser bom e combater em nome da justiça, apesar das dificuldades que isso pode trazer.

O dilema é o mesmo de Gollum, nele já amplificado a uma escala paranóica e caricata. Devemos ser egoístas e nos preocuparmos conosco acima de tudo, ou devemos ter em mente um bem maior e termos uma noção altruísta com relação ao mundo? “O Senhor dos Anéis”, além de ser uma tremenda diversão, oferece essa resposta, de forma tão retumbante que é impossível discordar dela.

Tolkien sempre disse que sua história não representava qualquer alegoria (ao menos intencional) do mundo real. Apesar disso, a obra do escritor parece vir bem a calhar, ainda mais no momento crítico da história da humanidade em que estamos vivendo, onda a tecnologia e a ciência oferecem mais possibilidades do que nossa sabedoria pode administrar com justiça e propriedade.

Por isso, fico feliz que tantas pessoas estejam indo ao cinema para conhecer “O Senhor dos Anéis”.

Recomendação:

Salvador Nogueira é editor do Trek Brasilis