RETROSPECTIVA: O Sétimo Selo foi aberto?

Os últimos dias do ano ganharam um ar apocalíptico para os fãs de Jornada nas Estrelas. Depois de um ano de muitas esperanças, muita expectativa e apreensão, a situação da franquia parece mesmo estar num momento delicado. Diante desse quadro, escrever uma retrospectiva que faça justiça a 2002 sem se esquecer das perspectivas para 2003 configura tarefa das mais árduas.

O grande evento de 2002, sem sombra de dúvida, foi “Jornada nas Estrelas: Nemesis”. Foi no início do ano que o décimo longa-metragem da franquia para o cinema começou a ser filmado e, durante os últimos meses, os fãs puderam acompanhar o progresso do filme até seu lançamento, no dia 13 de dezembro.

Há vários anos os fãs (e o mercado) estão sinalizando para os produtores a situação de desgaste na qual se situa a marca Jornada nas Estrelas. A audiência medíocre de Voyager e o fato de que o público em geral parecia não ter mais nenhum interesse no que um dia já foi uma febre nos EUA davam pistas de que o ponto de saturação finalmente estava sendo atingido.

A Paramount Pictures ignorou todos esses sinais e, diante do apelo da rede de televisão UPN (pertencente ao mesmo grupo de empresas, encabeçado pela Viacom), pediu a Rick Berman que trouxesse uma nova série para substituir Voyager. Nascia Enterprise.

Os primeiros episódios da série, exibidos em setembro e outubro de 2001, pareciam sugerir que a mágica poderia realmente voltar, e o público novamente iria se sentar no sofá semana após semana para ver uma hora de Jornada nas Estrelas. Ao longo da primeira temporada, entretanto, os índices de audiência foram encolhendo episódio após episódio.

Em 2002, tanto no fim do primeiro ano quanto nos até agora 13 episódios exibidos da segunda temporada, os índices Nielsen caíram até se tornarem muito parecidos com os já patéticos números de Voyager. Como se não bastasse, a qualidade da série também diminuiu, com várias reciclagens de episódios antigos e roteiros pouco inspirados. Todo o talento parecia surgir nos poucos lampejos dos roteiristas Michael Sussman e Phyllis Strong. Chris Black também teve sua dose de qualidade representada. Mas os esforços individuais ficaram ofuscados pelo marasmo pasteurizado predominante, imposto por Rick Berman e Brannon Braga.

Quem acompanha a segunda temporada de Enterprise no ritmo da exibição americana e está observando a evolução da série e o desempenho do programa nos índices Nielsen começa a imaginar que, talvez, o show consiga um feito só antes atingido pela Série Clássica: ser cancelado.

Diante da situação pouco confortável da série, “Nemesis” parecia ser a resposta. Também concebido com a idéia de trazer sangue novo à franquia, o filme foi escrito pelo prestigiado roteirista John Logan e dirigido por outro novato de Jornada, Stuart Baird. Com a suposta popularidade do elenco de A Nova Geração e uma dupla de profissionais conceituados e colhidos fora do ambiente Trek, Rick Berman parecia ter conseguido criar a combinação necessária para produzir um sucesso de público e crítica, depois do fiasco de “Jornada nas Estrelas: Insurreição”.

A confiança no filme era tamanha que a Paramount programou a estréia para um confronto quase direto com a segunda parte da trilogia arrasa-quarteirão “O Senhor dos Anéis”. Patrick Stewart elogiou como nunca a nova produção e todos pareciam otimistas com relação ao futuro. Mais de uma vez durante o ano, John Logan falou sobre seus planos para Jornada XI. O sucesso parecia mais uma vez bater à porta da Paramount.

Quanto maior a altura, maior o tombo. Certamente, todos os fãs americanos estão sentindo o peso dessa frase, enquanto acompanham o progresso da bilheteria de “Nemesis”. Pela primeira vez, um filme de Jornada nas Estrelas não fica no primeiro lugar no fim de semana de estréia. E a derrota não foi para nenhuma super-produção, mas para uma comédia romântica estrelada pela cantora Jennifer Lopez.

“Nemesis” ainda quebraria muitos tabus. Tornou-se a pior bilheteria de estréia de um filme de Jornada nas Estrelas (com os devidos ajustes inflacionários do dólar) e está concorrendo seriamente ao título de pior renda doméstica (contando apenas o mercado americano) da história da franquia. E “Nemesis” foi o filme mais caro já feito com o nome Jornada nas Estrelas. A Paramount gastou cerca de US$ 60 milhões com o filme, mais cerca de US$ 33 milhões com publicidade.

O filme deve fechar o ano com uma bilheteria doméstica de US$ 30 milhões. Um prognóstico otimista sugere que o filme deve encerrar sua jornada pelos cinemas americanos com uma arrecadação de, no máximo, uns US$ 60 milhões.

Como se o fã americano precisasse de mais um sinal de que a franquia vai mal, a revista “Star Trek Magazine” acaba de anunciar que sua última edição deve circular em abril de 2003. A coisa vai mal. Recentemente, até mesmo Rick Berman mudou seu discurso e disse que talvez Enterprise tivesse sido lançada prematuramente. Um executivo da Paramount também rompeu o discurso “Estamos muito satisfeitos” para revelar que o estúdio esperava uma bilheteria um pouco maior da estréia de “Nemesis”. Ninguém está satisfeito com o atual desempenho da franquia.

Claro, quando estamos falando de um empreendimento que rende bilhões de dólares com razoável constância durante 36 anos, não há como pensar que não houve bons momentos. A Paramount firmou sua política de lançar DVDs duplos dos filmes da série, com direito a muitos extras e, em alguns casos, edições especiais do diretor. O lançamento dos DVDs de A Nova Geração seguiu como planejado, e Deep Space Nine vem aí em 2003. Apesar da mediocridade, até Enterprise rendeu uns bons episódios aqui e ali. E “Nemesis”, apesar dos pesares, não é um mau filme.

E, olhando para a nossa vizinhança, Jornada brilhou mais do que nunca no Brasil em 2002. O canal USA exibiu episódios inéditos de A Nova Geração, Deep Space Nine e Voyager por boa parte do ano. A Paramount Home Entertainment reconheceu o mercado brasileiro como potencial comprador de lançamentos de Jornada e colocou a franquia como uma de suas grandes atrações (garantindo até o lançamento das edições duplas dos filmes, que muitos esperavam que ficassem restritas ao mercado americano e europeu). Pela primeira vez em muitos anos, tivemos um novo lançamento em quadrinhos da série, na forma da Graphic Novel “Dívida de Honra”, publicada pela editora Brainstore. E o canal AXN surpreendeu todo mundo ao comprar e iniciar a exibição da primeira temporada de Enterprise, em tempo recorde para uma série de Jornada. Uau, se na terra do Tio Sam a coisa foi mal, aqui nós nos demos bem.

E é por isso que Jornada nas Estrelas é tão forte: mesmo no atual estado de saturação da marca, a Paramount ainda ganha muito dinheiro. E está faltando apenas inteligência e paciência para que o estúdio possa ganhar mais dinheiro ainda.

O futuro de Jornada nas Estrelas pode estar parecendo tenebroso, mas não é. Talvez ele não seja o que muitos fãs gostariam que fosse, mas estamos longe de ver a Paramount execrando todos os seus atos passados e simplesmente enterrando a franquia a sete palmos, rezando uma missa e partindo para outros projetos. Isso não vai acontecer.

Entretanto, que ninguém espere a inércia como a principal contratada do estúdio para gerir o futuro da franquia. A política adotada nos últimos anos de simplesmente “ir tocando o barco” vai mudar. E ela vai se fazer sentir num primeiro plano na esfera cinematográfica.

Certamente não haverá um novo filme com o elenco de A Nova Geração. Aproveite para dar seu adeus a Picard e cia. em fevereiro, com “Nemesis”, porque, para eles, esse é o fim. Com um custo de US$ 60 milhões e uma bilheteria de estréia de US$ 18 milhões, o negócio é simplesmente insustentável.

Não que “Nemesis” não vá dar lucros à Paramount; vai. Depois que contarmos toda a bilheteria internacional, todas as vendas com DVDs, VHS e dezenas de produtos licenciados, o estúdio vai terminar com mais dinheiro do que quando começou. Mas essa margem de lucro está ficando cada vez menor e o tempo de recuperação, cada vez maior. Nem sempre o estúdio pode esperar quatro anos para ver seu dinheiro de volta. O negócio dos filmes precisa ser mais rápido que isso.

Então, a questão é meramente matemática. Você tem uma franquia que pode, desgastada e tudo mais, oferecer uma bilheteria de estréia de US$ 18 milhões. O que você precisa? De um filme que custe a metade dos US$ 60 milhões que “Nemesis” custou. É possível fazer um filme de Jornada que custe menos que isso? Vou apenas dizer que “Nemesis” teria sido uns US$ 20 milhões mais barato se Patrick Stewart não tivesse sido chamado de volta à cadeira do capitão. O leitor tire suas conclusões.

Eu sou capaz de apostar que, antes mesmo do fim de 2002, com os números na mão, os executivos da Paramount já começaram a discutir o que eles vão fazer com Jornada nas Estrelas no cinema a partir de agora. E certamente não está sendo cogitada a hipótese de não fazer mais nada. Só veremos um hiato um pouco maior, até que eles decidam o que fazer.

Tenho a sensação de que o bastão cinematográfico pode acabar sendo tirado de Rick Berman, da mesma forma que foi feito com Gene Roddenberry depois do primeiro filme de cinema. Num chute ainda mais desvairado, acho que alguma coisa na linha da antiga idéia de Harve Bennett para o sexto filme da série, envolvendo novos (e baratos) atores numa versão mais jovem dos personagens clássicos, pode acabar sendo invocada. Quem sabe para os 40 anos de Jornada, Kirk e Spock não estarão de volta aos cinemas, relembrando seus velhos tempos de Academia? Eu não descartaria tão depressa essa opção… mas só o tempo dirá o que o futuro reserva. E para 2003 não devemos ter muitas notícias do futuro cinematográfico da franquia.

No campo televisivo, Enterprise ainda deve continuar entre nós. Por piores que estejam os índices de audiência, a gama de produtos licenciados, os direitos de exibição em syndication, a venda de DVDs e a manutenção da marca Jornada nas Estrelas no mercado vão garantir a existência da série por suas sete temporadas programadas. Um cancelamento está fora de cogitação.

Mas podemos (e devemos) esperar novidades. A série deve tomar direções inesperadas, tanto em termos criativos como nos bastidores. É aguardar; os próximos meses (e temporadas) serão bastante interessantes.

No final das contas, Jornada nas Estrelas de fato enfrenta um momento difícil. Nunca a popularidade da série esteve tão baixa e a conjuntura, exigindo tantas mudanças. A última vez que isso aconteceu foi no cancelamento da série original, em 1969. Quem viveu os últimos 30 anos sabe que aquele estava longe de ser o apocalipse. Que venham os próximos 30!