Inspirado em um recente tópico no FTB, e para celebrar o retorno de Deep Space Nine para a grade de programação do Sci-Fi Channel no Brasil, está na ordem do dia a migração, do Conteúdo Clássico do TB, de um artigo sobre o período inicial de DS9. Algumas percepções muito comuns ao fandom de Jornada nas Estrelas, sobre as primeiras temporadas de Deep Space Nine, seguem as linhas de “As primeiras são ruins / só melhorou depois da quarta / só melhorou com o Dominion / com a Defiant / com o Worf / com a guerra”. A tudo isto, digo: nada mais longe da realidade.
Como sempre tenho comentado quando a oportunidade surge, Deep Space Nine foi na realidade uma série muito mais constante do que se acredita. Suas primeiras temporadas, embora de fato não tenham sido as melhores da série, estão bem longe de serem tão ruins como se acredita que foram, e as últimas temporadas, muito boas que tenham sido, também não foram as obras-primas da civilização ocidental a qual são creditadas como. A série na realidade teve uma constância bem regular, e seu crescimento na qualidade foi gradativo e suave, e não em saltos e surtos.
O que eu acredito que ocorra é algo que de certa forma também pode ser observado para Voyager e Enterprise. Embora as justificáveis críticas aos inúmeros problemas de ambas estas duas séries sejam compreensíveis, isto muitas vezes acaba gerando uma quantidade e intensidade nas críticas que se torna completamente desproporcional, algo inadequado para realmente definir os pontos fortes e fracos de ambas.
O mesmo ocorre para as três primeiras temporadas de Deep Space Nine: embora até poderiam ser consideradas como as “mais fracas” da série, isto não as torna necessariamente ruins – mas muito pelo contrário. Tais temporadas demonstram as boas qualidades da série como um todo desde o início, mas mesmo assim acabam sofrendo uma quantidade de críticas as quais não se sustentam muito contra uma análise criteriosa de seus episódios e temas, que é o objetivo deste artigo.
Avaliando-as como um todo em relação a constância e regularidade, as duas primeiras temporadas são semelhantes. Começam bem e dão uma certa caída, e ficam oscilando um pouco antes de uma estabilizada por meados de temporada, com seqüência de alguns constantes bons episódios, e nova queda e recuperação antes do fechamento da temporada. Na primeira, a estabilidade de meados de temporada ocorre por entre “The Nagus” e “Progress”, enquanto na segunda isto ocorre mais à frente, entre “Blood Oath” e “Tribunal”. Já a terceira temporada tem um perfil um pouco diferente. Começa bem e mantém uma constância de bons episódios por mais tempo, antes de começar a oscilar bastante após “Civil Defense”, para novamente conseguir outro bom grupo de episódios em volta do duplo “Improbable Cause” e “The Die is Cast”, e da mesma maneira que a segunda, termina em um crescendo de qualidade até o season finale – “The Jem’Hadar” para a segunda, “The Adversary” para a terceira. Todas estas três temporadas têm, é claro, seus episódios classe unha-na-lousa, como por exemplo, “Move Along Home”, na primeira, “Melora”, na segunda e “Fascination”, na terceira. Mas mesmo estes e alguns outros estão longe de comprometer o todo de cada uma das três temporadas.
A primeira temporada, como qualquer temporada inicial, precisa realizar o trabalho de estabelecer todo o ambiente geral dos personagens e seu contexto além de também ter que apresentar as histórias individuais de cada episódio. E este trabalho a primeira temporada de Deep Space Nine realiza muito bem. Episódios mais dedicados aos arcos principais da série como “Babel”, “Battle Lines” e “Progress” dão força a isto, mas mesmo nos meandros de isolados episódios mediano-para-ruim como “The Forsaken” podemos encontrar elementos valiosos sobre os bajorianos estarem lidando com o pós-guerra, fim da ocupação e reconstrução de sua sociedade. E é com a ajuda deste desenvolvimento que “Duet”, por exemplo, consegue ser o grande episódio que é, envolvente e cativante. Sem este contexto, de sabermos as relações bajorianas e cardassianas, e conhecermos os personagens envolvidos, particularmente Kira, “Duet” poderia soar vazio e até mesmo falso. Teria, por exemplo, o mesmo problema que “The Naked Time” na Série Original e “The Naked Now” em A Nova Geração, que é deixar um aspecto de “Tá, e daí?”, devido a não sabermos muito sobre os personagens e seu ambiente antes da situação apresentada.
Já a segunda temporada consegue fazer bom uso dos elementos estabelecidos na temporada anterior, tanto em relação a interação dos personagens como os arcos de história. Com os personagens, a interação entre estes já se dirigia a caminhos que iriam, mais tarde, ficar bastante familiares ao público, como por exemplo a camaradagem entre Bashir e O’Brien. No que diz respeito a tramas, temos um bom início com o mini-arco de insurgência política bajoriana, com a trilogia do Círculo. Após isto, há a oscilação de meados da temporada, onde podemos encontrar tanto bons segmentos ainda relacionados aos bajorianos (e Kira entre eles) como “Cardassians” e “Necessary Evil”, como também uma seqüência rápida de fracos episódios de todos os tipos, de “Second Sight” até “Rivais”. Mas após “Blood Oath”, a segunda temporada se mostra extremamente sólida, e mesmo com a leve queda antes de “The Jem’Hadar”, a média de qualidade é louvável.
Nesta temporada que temos a introdução do Dominion, em um ritmo sutil que, enquanto consegue manter a coisa instigante, também não toma todo o oxigênio da sala, e foi bem levado – apesar de eu pessoalmente ter alguns problemas com os detalhes da coisa, como subjetivamente sugerir que os serviços de inteligência federados estariam mais por fora da situação no quadrante Gamma do que civis ferengis, os quais Deep Space Nine sempre teve o costume de relegar demais ao papel de comic-relief. Além disto, a segunda temporada também viu o arco Maqui engatar em bom ritmo, e na visão deste missivista, este foi o ponto alto da temporada. Como já comentado em artigo anterior no conteúdo clássico do Trek Brasilis, sempre considerei o arco Maqui como o melhor arco de história que já houve em Jornada nas Estrelas, mas que infelizmente não viu todo o seu excelente potencial ser adequadamente desenvolvido.
A terceira temporada inegavelmente teve reflexos da carga de Deep Space Nine ter que assumir a posição de “série-sênior” da franquia, com o fim de A Nova Geração, e com isto, as responsabilidades enquanto produto de entretenimento em responder com a audiência que se espera de uma série em crescimento. Tais fatores, sem dúvida, influenciaram os caminhos pelos quais a série seguiu da terceira temporada em diante. Este cenário de “melhoras necessárias para cativar a audiência” ilustra bem a nossa questão aqui em discussão, sobre a percepção equivocada de que a série teria melhorado em saltos notáveis, o que não foi realmente o caso.
Contudo, negligenciar os elementos da terceira temporada que foram introduzidos em resposta a isto seria um equívoco, claro. Tais elementos de fato ajudaram a série a amadurecer e diversificar a interação dos personagens e o desenvolvimento das tramas, mas jamais foi algo solenemente responsável por quaisquer melhorias que ocorreram, e também jamais deixaram a série completamente refém das pragmáticas questões de audiência. Isto, aliado à boa adição a equipe de Ronald Moore e René Echevarria, alumnis de A Nova Geração, certamente deve justificar em parte a razão do perfil da terceira temporada ser diferente das duas primeiras, com maiores oscilações entre fortes e fracos episódios, em a coisa estar se reassentando em um novo tom, mas houve uma boa constância no início e final da temporada; a série demonstrava maturidade crescente.
O mais visível elemento adicionado foi, é claro, a Defiant e a apresentação definitiva do Dominion. Apesar de que eu considerar a Defiant uma boa adição à série, eu sempre considerei que a maneira pela qual isto ocorreu deixou a desejar. O arco em que isto ocorreu, com o season-finale “The Jem’Hadar” e o duplo “The Search”, teve um tom exagerado de urgência apenas para no final haver uma anulação da situação que estabelece, pela maneira que a segunda parte do duplo terminou. E a maneira na trama pela qual a Defiant foi alocada para DS9 também deixou a desejar. Ao invés de o almirantado federado despachar para a ainda mais importante DS9 uma necessária Força-Tarefa de várias naves, nucleada em uma nave pesada, o que eles fazem é enviar para lá um protótipo de pré-série com uma tripulação só de praças, a qual o corpo de oficiais de DS9 é quem teriam que comandar. E ao invés de Sisko demonstrar indignação a esta política, ele é quem demonstra ter sido um dos patrocinadores da idéia, em um momento de conflito desnecessariamente desperdiçado.
Sim, estou ciente das necessidades e limitações da série enquanto produção televisiva: não seria fácil a inserção de inúmeras naves capitais no todo da série, bem como os personagens de um corpo de oficiais próprio para a Defiant. Contudo, como disse acima, interação entre a equipe em comando da DS9 e o almirantado federado poderia gerar boas tramas com Sisko aceitar com reservas os seus “reforços”, mas o que houve foi o contrário disto. A idéia original por Michael Piller e Ira Behr para uma nova nave para a série foi boa, mas o desenvolvimento por Ronald Moore da introdução dela nunca realmente foi adequado.
Mas seja como for, a Defiant e a maior presença do Dominion foram oportunidades para explorar novas situações, especialmente para Odo, que agora tem que lidar com a parte negativa do velho clichê de “Cuidado com o que deseja: pode conseguir”. Odo agora não lida mais com o fato de não conhecer suas origens, mas sim com as conseqüências desta descoberta, e isto realmente deu uma nova dinâmica ao personagem, coisa muito bem vinda. O resultado líquido deste potencial começou a surgir em episódios de meados da temporada, para finalmente ter um pico com a excelente dupla “Improbable Cause” e “The Die is Cast”. A terceira temporada também foi campo para, por exemplo, a expansão dos elementos do universo-espelho, iniciado no ótimo “Crossover” da segunda temporada, e também a expansão do manifesto de personagens secundários, e entre eles, Michael Eddington é um destaque que quero fazer, pela qualidade do personagem e da adequada atuação “ruído-branco” de Kenneth Marshall para este momento do personagem, e a importância deste para o arco Maqui. Mas mesmo episódios de certa forma isolados do todo, como “Explorers” e o duplo “Past Tense” ajudam a reforçar a terceira temporada.
Considerando todos estes fatores, qual seria então a razão desta percepção geral de que estas temporadas não teriam sido tão boas como podemos constatar que de fato foram? Eu acredito que parte desta razão está no fato de se esperar como elemento principal delas algo que no caso de Deep Space Nine, sempre esteve como elemento secundário, que seria haver “high-concepts”, elementos exagerados de ficção-científica e ação e efeitos por si mesmos. Um bom bolo não deve ser julgado pela sua cobertura, mas sim pelo seu recheio, e as três primeiras temporadas de Deep Space Nine nunca prezaram por capricharem na cobertura, é verdade: nelas, não encontramos doses exageradas e forçadas de coisas como batalhas, ação, tirinhos e tecnobable vazio – embora tais coisas também estejam presentes.
A segunda temporada viu a introdução do Dominion? Sim. A terceira temporada viu a introdução da Defiant? Sim. Mas o crescimento de qualidade da segunda em relação a primeira, e da terceira em relação a segunda, de modo algum é devido a introdução destes elementos, mas sim devido ao fortalecimento das características principais da série. O que as três primeiras temporadas de Deep Space Nine claramente possuem é o saboroso recheio da série como um todo, por todas as suas temporadas: o forte desenvolvimento de personagens, a interação destes, os conflitos resultantes disto, as tramas bem elaboradas em torno disto, e a amarração como um todo destes elementos. Este recheio, já bem embasado, apenas foi recebendo aprimoramentos, o que garantiu o constante crescimento na qualidade destes pontos fortes de Deep Space Nine, que ocorreu de maneira bem gradativa, e não com saltos ou em surtos, como se costuma imaginar.
Sempre considerei que, caso os arcos de trama de Deep Space Nine tivesse seguido por caminhos bem diferentes do que foram a partir da quarta temporada, ainda assim a série teria mantido o seu constante e gradativo aumento de qualidade, e na realidade, eu sempre acreditei que de fato realmente deveria ter seguido outros caminhos diferentes do que foi a guerra primeiro com os Klingons (e sim, eufemismos e tecnicalidades à parte, foi uma guerra) e depois com o Dominion. A franquia de Jornada nas Estrelas como um todo nunca dependeu de guerras e batalhas para ter a qualidade que tem, e Deep Space Nine não é diferente. No meu ver, poderia ter tido ainda mais qualidade se tivesse evitado o preguiçoso caminho fácil de “conflito-tipo-Segunda-Guerra” para poder apoiar elementos dramáticos.
Mas enfim. No frigir dos ovos, uma coisa é certa. Não precisamos fazer força em procurar o que é que, afinal de contas, as três primeiras temporadas de Deep Space Nine tem de tão bom assim. Não, basta apenas assistirmos de maneira tranqüila. Aí sim, então, os seus pontos fortes naturalmente se destacam, e podemos perceber as razões de estas primeiras temporadas serem tão fortes como o todo da excelente série a que deram início.
(Artigo originalmente publicado no conteúdo clássico do TB.)